Traduzido por Luciana Arraes

Este artigo descreverá minha experiência como professor de flauta Suzuki no programa musical Guri Santa Marcelina na cidade de São Paulo, Brasil, entre os anos de 2011 e 2020. Minha gratidão a Mayki Fabiani por sua ajuda e compromisso com a revisão deste artigo e a Luciana Castillo por torná-lo possível.

Quem eu sou—Minha história*

Sou uma mulher negra brasileira, nascida em São Bernardo do Campo, cidade vizinha à capital paulista. Fui criada em um bairro longe do centro da cidade, onde itens básicos como escolas, mercearias, farmácias, bancos e bibliotecas não eram acessíveis.

Venho de uma família cristã onde tocar música fazia muito parte de nosso cotidiano. Tenho lembranças de minha bisavó cantando hinos e falando sobre o quanto ela teria gostado de ter aprendido um instrumento. Mas sendo uma pobre mulher indígena em uma sociedade desigual, aprender música não era possível.

Como mãe, minha bisavó se assegurava de que todos os seus filhos aprenderiam a cantar e tocar instrumentos: é verdade, muitas mulheres de minha família não eram capazes de aprender música por causa dos tabus da época. Eu cresci desejando tocar piano, mas devido a dificuldades financeiras durante minha infância, isso não foi possível.

Aos 13 anos, comecei meus estudos musicais na igreja, que oferecia aulas de teoria, saxofone, clarinete e flauta—tudo ensinado pelo mesmo professor. Comecei a tocar saxofone, mas logo descobri os sons da flauta. 

Um ano depois, comecei a dar aulas para alunos iniciantes, já que meu professor não conseguia mais acompanhar todas as aulas. Tornei-me professor porque havia uma necessidade, mas a experiência de ensino me permitiu desenvolver minha técnica de instrumento e foi minha primeira fonte de renda.

Aos 16 anos de idade recebi uma bolsa de estudos para freqüentar a escola de música da Fundação das Artes de São Caetano do Sul e mais tarde a Escola Municipal de Música de São Paulo. Participei de importantes festivais no Brasil, tais como o Festival Internacional de Campos do Jordão. Freqüentei a Universidade Estadual Júlio Mesquita Filho—UNESP em São Paulo, onde me formei em 2016 com um bacharelado em interpretação de flauta.

A experiência docente que adquiri na igreja me acompanhou em todos os momentos do meu desenvolvimento musical. Lecionei em várias igrejas e pequenas escolas, enquanto fazia parte de conjuntos musicais—bandas sinfônicas e bandas marciais.[1]

Em 2005 eu me juntei à Banda Sinfônica de São Bernardo, sendo sua flauta principal de 2005 a 2010—época em que grupos políticos defendiam o fechamento da banda, resultando no desligamento de vários músicos, inclusive eu mesmo. Em 2010 comecei a dar aulas de flauta em grupo e individuais e teoria musical nas cidades de Ribeirão Pires e Escolas Municipais de São Bernardo do Campo.

Em 2011, aos 26 anos, ingressei no corpo docente do Programa Guri Santa Marcelina, um projeto social em São Paulo, ao mesmo tempo em que freqüentava a faculdade. Era um desafio coordenar e organizar o trabalho da faculdade com o ensino.

Minha realidade como estudante universitária pública refletia a realidade de muitos dos habitantes do interior da cidade. A educação superior expôs a desigualdade que um jovem negro poderia enfrentar ao entrar e freqüentar a faculdade. Entre todos os desafios para obter um diploma, alguns estudantes do interior da cidade enfrentam desafios adicionais: a distância de suas casas até a universidade, capacidade financeira limitada para pagar transporte, refeições, livros, instrumentos, canas e muitos outros materiais, com o fato adicional de as universidades em geral não estarem equipadas com espaços e horários que permitissem aos estudantes coordenar o trabalho e seus estudos.

Em 2015, iniciei a pesquisa para minha tese final de graduação, a fim de cumprir os requisitos para a graduação. Minha pesquisa foi centrada nos diferentes métodos pedagógicos utilizados pelos professores do Programa Guri Santa Marcelina, o que me levou a ser apresentado ao Método Suzuki, utilizado por vários dos professores do programa.

Naquele ano, comecei o treinamento Suzuki com o curso fundamental Filosofia Suzuki (filosofia Suzuki) com o instrutor Shinobu Saito. Em 2016 e 2017 completei o treinamento das Unidades Um a Três do Método Flauta Suzuki no Peru, com a instrutora Kelly Williamson.

Para poder participar do treinamento no Peru, solicitei uma bolsa de estudos SAA que me ajudaria em algumas das despesas. Mesmo com a bolsa de estudos, eu ainda tinha que pagar, sem nenhuma ajuda extra, por passagens aéreas, hospedagem e alimentação. Como os eventos de treinamento acontecem freqüentemente em épocas do ano em que a escola está em sessão no Brasil, tive que perder alguns dias de trabalho, que foram descontados do meu salário.

Desde que encontrei o método, meu ensino se tornou baseado na filosofia e conceitos do Dr. Shinichi Suzuki, procurando desenvolver habilidades em meus alunos como disciplina, paciência e coragem, permitindo que eles se tornassem seres humanos excepcionais.

Aspectos estruturais do Programa Guri Santa Marcelina*

*** “As coisas eram diferentes naquela época”. - Uma frase comumente dita por pessoas idosas de algumas regiões do Brasil

Minha avó costumava dizer esta frase com bastante frequência a fim de ilustrar as diferenças entre sua geração e o tempo presente. Em geral, tais afirmações são dadas quando a nova geração não é capaz de realizar o avanço social que vem acontecendo ao longo dos anos.

Como resultado de minha própria luta para encontrar uma escola de música no início de minha jornada musical, sou capaz de perceber mais claramente a oportunidade dada por programas sociais como o Guri Santa Marcelina, o Programa Vocacional e o Instituto Baccarelli para promover o acesso à educação musical por uma grande parte da população de São Paulo.  Com isso em mente, sempre que me é dada a oportunidade, lembro aos meus alunos de “aproveitar esta oportunidade, porque as coisas eram diferentes naquela época”.

O Guri Santa Marcelina, criado em 2008, é um programa que oferece mudanças sociais através da música. Possui 46 localidades em diferentes regiões da cidade de São Paulo, a maioria em bairros do centro da cidade. As aulas são divididas em aulas de música para alunos de 6 a 9 anos; cursos seqüenciais e modulares para alunos de 10 a 18 anos e educação musical para adultos.

Não há nenhuma exigência de audição para participar do programa. O único requisito é que o aluno menor de 18 anos esteja matriculado e freqüentando a escola. As aulas acontecem em grupos e são organizadas em quatro aulas por semana, divididas em aulas de instrumentos aplicados, coral, teoria musical e prática de conjunto. Os alunos podem emprestar instrumentos para suas aulas e apresentações, que geralmente ocorrem no final de cada semestre e apresentam um programa preparado pelos alunos e professores.[2]  

A permanência nos cursos seqüenciais é decidida com base nas necessidades de cada aluno. Não há reprovação no curso ou perda de vaga devido a um baixo desempenho. Os alunos são aconselhados a fazer alguns cursos novamente quando necessário. Os alunos que concluem o curso seqüencial são orientados a se candidatar a outros programas de música na cidade para continuar seus estudos musicais.

Cada local do projeto é dirigido por uma equipe de três profissionais: um assistente social, um analista de instrução local e um assistente de apoio pedagógico. O Guri Santa Marcelina possui grupos artísticos jovens para o desenvolvimento de repertório. Os alunos entram nos conjuntos através de um processo de audição que analisa não apenas a performance instrumental ou vocal, mas também a participação do aluno nas aulas e atividades do projeto.

O projeto conta com 10 conjuntos: Banda Sinfônica Infantil, Banda Sinfônica Jovem, Banda Infantil Grande, Camerata de Violão Infantil, Coro Infantil, Coro Jovem, Coro Familiar, Orquestra Sinfônica Infantil, Orquestra de Câmara Infantil e Regional de Choro. As reuniões e ensaios acontecem no campus principal do Guri Santa Marcelina e as apresentações acontecem em diferentes locais da região de São Paulo.

A minha abordagem Suzuki no Guri Santa Marcelina*

O método Suzuki me ajudou a entender mais claramente o papel e a importância do professor no desenvolvimento do aluno. Entendi que é possível ter uma excelente educação em diferentes sociedades; como a Dra. Suzuki aponta, todos os pais em qualquer parte do mundo querem o que é melhor para seus filhos, portanto, a excelência na instrução pode ser aplicada a qualquer estrutura social. Foi assim que a filosofia de Shinichi Suzuki se espalhou pelo mundo até chegar ao Brasil, onde o método é aplicado em diferentes escolas, estúdios de música, projetos sociais e escolas Suzuki, abrangendo um grupo amplo e diversificado de pessoas.

Em seu livro Nurtured by Love, o Dr. Suzuki explica sua crença de que pessoas que têm suas habilidades bloqueadas podem ser transformadas em seres talentosos, ou seres humanos comuns podem se tornar extraordinários, tudo através de um sistema educacional que respeita e valoriza os fatores humanos.             

O Dr. Suzuki acredita que cada pessoa nasce com habilidades naturais, e meu papel como educador é assegurar um ambiente de sala de aula saudável que permita aos estudantes desenvolverem suas capacidades musicais e humanas completas e utilizá-las em todos os aspectos de suas vidas.

Meu ensino passou por uma transformação significativa após compreender a filosofia Suzuki, percebendo que para oferecer uma instrução que fosse acessível a todos, eu tinha que transformar a flauta em um instrumento interessante, levando em consideração todos os aspectos relativos aos alunos que chegavam à minha sala de aula.

Em meu estúdio particular, pude observar que meus alunos adultos estão procurando na aprendizagem da flauta como um complemento para suas profissões e trabalho. Vários destes alunos já atingiram a realização profissional e optaram por ter aulas a fim de desenvolver capacidades artísticas. Em geral, estes estudantes são financeiramente confortáveis, com uma forte estrutura familiar, sendo verdade também para as crianças que freqüentam as aulas no estúdio.

Na outra ponta, os alunos do projeto Guri Santa Marcelina têm diversas situações familiares e financeiras. A grande maioria dos alunos do programa de flauta procura se desenvolver musicalmente para poder tocar na igreja ou simplesmente aprender algo diferente, enquanto outros procuram encontrar maneiras de se desenvolver social e financeiramente também. 

Para adaptar minhas lições ao meu estúdio, uso a filosofia Suzuki para criar um ambiente que fomente o aprendizado, procurando cultivar meus alunos com instruções claras e um repertório diversificado que se conecte com diferentes expressões culturais e apresente todos os usos profissionais da música, como a música como ferramenta educacional e na ciência e na medicina.[3] Procuro ilustrar aos alunos maneiras de explorar seu potencial e desenvolver suas múltiplas habilidades.

Nas primeiras semanas do semestre, as aulas são sobre a familiarização dos alunos com o método Suzuki, chamando a atenção para a relação entre o aprendizado de uma língua e o aprendizado da música. Discutimos como o Dr. Suzuki construiu uma filosofia sobre a similaridade entre essas duas experiências de aprendizagem e também nos concentramos na necessidade de estar sempre atualizados com tudo o que está relacionado à flauta.

Eu ajudo os alunos a entender que o programa de flauta será conduzido com base nos benefícios da instrução em grupo e chamando a atenção para o fato de que aprender música é um processo contínuo onde cada pessoa se desenvolverá em seu próprio tempo. Seguindo estes elementos, meus alunos são capazes de ir além dos exercícios focados no instrumento, aprendendo a trabalhar em equipe, respeitando as diferenças de cada um, lidar com a frustração de não obter um resultado imediato, e valorizar o processo de aprendizagem mais do que os resultados finais. Suzuki explica que toda criança que é educada com conhecimento e compreensão é capaz de atingir um alto nível de conhecimento, afirmando que quanto mais informação é dada a um aluno, mais ele pode absorver.

Como um professor negro que faz parte de um segmento da sociedade que historicamente não é destinado à comunidade negra e que toca o que às vezes é considerado um instrumento de elite, estou consciente do meu papel de incentivar os estudantes a continuar seguindo seu caminho em seus estudos de música clássica, porque compreendo a realidade atual de muitos desses estudantes.

Os contextos sociais influenciam diretamente o engajamento dos estudantes. Em muitos casos podemos atestar as dificuldades dos estudantes em vir regularmente às aulas, seja por razões financeiras ou pela falta de apoio da família. Muitos destes estudantes abandonam o programa pela necessidade de trabalhar, ou pela falta de artistas inspiradores nos bairros das cidades. A aplicação do método Suzuki em um programa social é um desafio, pois estas questões sociais precisam ser levadas em consideração, bem como a falta de uma estrutura familiar que proporcione um ambiente de aprendizado estimulante para estes estudantes.

Nas aulas de flauta e nas aulas em grupo, optei por desenvolver um currículo que leva em consideração os muitos desafios que os alunos enfrentam em sua jornada musical, equilibrando os aspectos sociais e permitindo o aprendizado a partir de uma perspectiva que faça sentido para estes alunos. Eu encorajo os alunos a estudar independentemente de suas dificuldades, e a entender que é possível ter uma carreira na música em meio a todos os desafios. Seguindo meu exemplo, os estudantes acreditam na possibilidade de desenvolver seus objetivos, apesar de todas as adversidades.

Antes de qualquer compreensão dos aspectos musicais, é necessário construir a idéia de que é possível aprender música. Desta forma, procuro oferecer lições de flauta que não ignorem a importância do contexto social, pois sei o quanto isso impacta o progresso do programa. 

O envolvimento dos pais é sem dúvida uma das estratégias mais importantes do método Suzuki, embora uma das mais difíceis de ser aplicada no Guri Santa Marcelina. As dificuldades para tornar possível o envolvimento dos pais em um projeto social enfrentam desafios tais como: a falta de hábito em participar da lição da criança, da perspectiva dos pais, estrutura familiar instável, horários de trabalho incompatíveis com os horários das aulas e o medo dos pais de não ter conhecimentos suficientes para ajudar seus filhos.

Para fomentar o envolvimento dos pais no projeto, aproveito as reuniões de pais para promover uma aula aberta onde meus alunos ensinam aos pais as tarefas que eles aprenderam em suas próprias aulas. Os pais, guiados por seus próprios filhos, realizam exercícios de respiração, articulação da língua[4] e aprendem a desenvolver adequadamente o emboque da flauta[5] Durante esta aula aberta procuro reforçar os exercícios que devem ser trabalhados em casa, explicando como é importante o apoio da família no desenvolvimento do aluno. Mostro aos pais que é possível acompanhar e apoiar a prática e os estudos gerais de seus filhos, mesmo sem conhecer as técnicas musicais. Após a aula aberta, os pais passam a entender melhor o processo de aprendizagem e começam a se envolver mais nas atividades práticas em casa de seus filhos.

Para desenvolver um bom ambiente de aprendizagem, reforço aos alunos para estar sempre em contato com a flauta, através da prática do instrumento ou da escuta do repertório. Utilizo as mídias sociais para facilitar essa comunicação entre o aluno e o instrumento, encorajo os alunos a compor música durante suas aulas, cenas de teatro ou passos de dança que possam se relacionar com o assunto que está sendo aprendido, além de incorporar repertório diversificado que reforçará o aprendizado e a memorização.

Nas atividades diárias, utilizo objetos e brinquedos como ferramentas para auxiliar nos exercícios respiratórios, na postura das mãos e do corpo e no embelezamento, procurando transformar o processo de aprendizagem em algo natural. Utilizo balões, moinhos de vento de brinquedo, bolhas de sabão, além de pesquisar constantemente materiais que podem ser usados como auxílio nas aulas. Estas estratégias tornam a prática diária mais dinâmica e criativa. Em muitos casos, transformamos a construção de nossos brinquedos de respiração em atividades familiares. Este processo de construção de materiais didáticos ajuda a fomentar outras habilidades.  

Respeitar o próprio tempo do aluno é crucial para a excelência na educação. Para promover uma sala de aula saudável, eu também me concentro em compartilhar conhecimentos: ajudar os alunos a compartilhar o que aprenderam, apoiado por um ambiente seguro, permite-lhes desenvolver suas habilidades musicais em seu próprio tempo e estilo de aprendizagem. Apesar de todos os meus esforços para manter os alunos envolvidos em suas lições de flauta, muitos deles desistem por razões financeiras, com o fato de que muitos alunos estão em uma situação de vulnerabilidade social.

Nos conjuntos infantis e juvenis, bem como nas escolas de música localizadas no centro de São Paulo, as disparidades sociais são muito óbvias devido às dificuldades financeiras e de transporte e alimentação, além da falta de apoio familiar para equilibrar o trabalho e seus estudos.

Os programas sociais são a porta de entrada para que estes estudantes possam se ver com novas oportunidades. É importante continuar desenvolvendo maneiras de enfrentar a desigualdade e proporcionar acesso a uma boa educação. Não é possível desenvolver uma educação musical respeitosa sem levar em consideração a desigualdade estrutural de nossa sociedade.

É importante lutar por políticas sociais que ajudem a luta pela igualdade, mas isso não é suficiente. As desigualdades presentes dentro dos programas sociais e das comunidades Suzuki precisam ser enfrentadas, e aqueles dentro destas estruturas precisam entender seu papel na luta contra a desigualdade.

Apesar de todos os desafios estruturais, continuo a permitir que as lições de flauta sejam uma oportunidade para os estudantes terem acesso a novas perspectivas de vida e de mundo. No entanto, ainda há muito a ser feito. Continuaremos a andar.

Notas

[1]. Uma banda marcial é um grupo de músicos que normalmente se apresenta ao ar livre, além de recintos fechados.

[2]. O primeiro semestre compreende os meses de janeiro a julho e o segundo semestre os meses de agosto a dezembro.

[3]. Introduzo os campos da Educação Musical e Musicoterapia, além do campo crescente do uso da música na Neuropsicologia.

[4]. A articulação da língua é uma técnica simples que permite aos instrumentos de sopro separar as notas.

[5]. A forma correta dos lábios ao tocar a flauta.